01 dezembro, 2010

O canto da sereia e o náufrago

Pesquisa é um canto de sereia que seduz e isola. Somos envolvidos em seus encantos e mergulhamos cada vez mais fundo em um oceano de conceitos tão fascinantes como intraduzíveis.

Absorvidos, esquecemos os outros marujos que deixamos para trás – tampouco poderíamos explicar (sem mostrar) as cores do fundo do mar para os que ainda sob ele se abrigam. E, por ser uma senhora caprichosa, nos é vedado continuar a ouvir sua bela melodia no conforto do barco; a sonoridade verdadeiramente pura só pode ser vislumbrada no meio líquido, onde os gritos de apelo de nossos companheiros são sufocados.

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Um semestre não é o suficiente para construir laços de amizade com nossos alunos. Raramente vemos mais de uma vez os colegas cujas pesquisas nos influenciaram - ou que se baseiam em nossas ideias.

Pensava que tinha abandonado meus amigos quando abdiquei da prática profissional para seu ensino e pesquisa. Mas talvez o que foi deixado para trás foi (meu antigo) Eu, náufrago que se desviou da rota, encalhado em uma ilha deserta que tomei por amante.

14 março, 2010

Prudência

Insone e sozinho, não consigo embarcar nos lençóis para longe de toda essa realidade sem ter você ao meu lado. Não posso dormir à noite a menos que você povoe (ao menos) meus sonhos: sua companhia é uma garantia de que estou indo para o lugar certo; uma noite sem você já é um pesadelo.
De manhã é difícil de deixar as areias movediças do colchão de casal semivazio sem ter como destino e compensação o seu cheiro no meu travesseiro.

Preciso de um “wake up call” seu, porque você é o melhor motivo para eu sair da cama (já que você não está nela, afinal). Ligue de manhã para me acordar – meus olhos só aceitam o nascer do sol no silêncio do seu sorriso.

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O único leito que não mais deixarei será ao seu lado. Mas não se preocupe: ainda não estou pronto para partir. Não há um paraíso para onde ir se você não estiver nele – não seria paraíso sem você.

13 março, 2010

Pandora, Borges e o bebê

Ela sai do laboratório, cansada depois de mais uma jornada frustrante entre milhares de frases esparsas, procurando a sentença que contenha toda a beleza do mundo: a chave que se encaixa na fechadura de toda a tristeza eterna, liberando a felicidade de sua humanidade limitada.
Há meses tenta achar a frase perfeita; ela deve ter se escondido entre tantos livros, formulários, receitas e bilhetes que ela categoriza, seleciona... e rapidamente descarta. Infelizmente, a cada centena de registros que sua equipe analisa diariamente, bilhões novos são publicados, conversados, impressos ou enviados eletronicamente – um palheiro que cresce constantemente, aumentando a chance de que uma agulha esteja lá dentro, mas dificultando sua localização precisa. A máscara que impede a contaminação pelos ácaros seculares dos pergaminhos mais antigos também oculta qualquer sorriso que possa contaminar seus lábios.

Em casa, seu marido deixou uma panela tampada com sopa de letrinhas antes de sair para o turno da madrugada no hospital. Enquanto a sopa esquenta, ela tenta digerir, fascinada, os sons murmurados pelo seu bebê que aprende a falar – teria sua melodia sentido excessivo, significados demais para serem contidos em poucas palavras?
A cada colherada, de aviãozinho, as letras da sopa formam a sequência exata da frase que ela tanto busca – mas não há necessidade de se preocupar com isso, agora. A risada dele (mais gostosa pelo alimento simbolicamente nutritivo) embala seus ouvidos de volta para um tempo além das palavras e dos significados, onde os sentidos ainda podem imperar soberanos.

04 março, 2010

Sobre rodas

Você acorda sem acreditar que o relógio já deu a volta até o seis, querendo que fosse sábado ou que tivesse dinheiro – ou coragem – a ponto de mandar tudo rodar no inferno em que já estão.
Em minutos a colher gira para adocicar um café sem sal, você toma uma ducha pouco quente, escova a gravata e amarra nas costas a pasta, ou algo parecido, em outra ordem. Esses fatores podem mudar em casas vizinhas – já reparo uma maioria desgravatada, talvez para facilitar a passagem da corda para a forca ou da coleira ao redor do colarinho.
Mas o caminho passa pelas mesmas artérias bloqueadas no trânsito, com o destino na mesma mesa, uma safena e talvez a aposentadoria. Entre tantos outros, no carro, você procura o horizonte, engolido por tantos prédios com muitas mesas e gravatas.
Enquanto você reclama do mesmo trânsito e do azar que lhe sobrou na roleta das heranças, eu espero a enfermeira trazer a cadeira de rodas e me levar ao mesmo jardim. Nessa oscilação de destino repetitivamente indesejado, não somos tão diferentes. Mas você pode dirigir para outro lugar.

03 março, 2010

Marcado

Qualquer crítica sobre a marca de batom no seu colarinho seria, na verdade, uma louvação: você carrega os lábios dela ao redor do pescoço como uma medalha de uma prova conquistada.
Essa marca é só um traço das tantas que ela já deixou em você; rugas povoam um terreno já estéril na minha pele, tocada somente por beijos de perfume e carícias de creme hidratante.
Seu batom tem o gosto azedo de meu almoço solitário, enquanto você levava a outra a um banquete de você – ela te devorou e ainda deixou restos, certamente para humilhar a minha fome com sua fartura. Meu batom não exala cor tão viva, e só tingiu a rubra taça de vinho. Meu salto, solto e sozinho num escritório vazio, foi acompanhado só pelo próprio eco, um compasso um por um, enquanto ninguém mais voltava dos seus almoços executivos com outras que não são eu.
Tenho que me contentar em ter seu horário comercial, nos dias úteis, sob meu chicote e ferro em brasa. Marco suas costas com mais força do que a ordenada aos outros dos meus servos, porque, à noite, é ela quem terá que lamber suas feridas, os nacos da sua carne que eu tomei – indicarei para ela, assim, o quanto você é também meu. Pedaços são pouco para nutrir minha ânsia, eu sei, ainda mais quando vejo, em sonhos, que a ceia e o leito dela são você inteiro.

14 fevereiro, 2010

Aos tropeços

Quero agradecer aos meus tropeços.
Cada vez que bati a cabeça em uma porta entreaberta, por cada rasgo nas minhas camisas fisgadas em maçanetas, cada desencontro e atraso. Preciso reconhecer o valor inestimável de cada decepção, de cada lágrima na chuva enquanto via alguém levar um pedaço meu embora. Sou grato a cada uma delas, por toda a dor, por todas as noites em que vaguei desnorteado, sem saber para onde (nem se deveria) ir.

Obrigado, por que cada um desses desvios compôs um tortuoso caminho até você, a única pessoa que podia me colocar de volta nos trilhos.
Ainda ando aos tropeços porque desconsidero o chão: só tenho olhos para você, dividida entre o meu lado e o horizonte. Mas sei que agora, de mãos dadas, evitamos a queda.
Happy Valentines Day!