08 fevereiro, 2008

Writers’ block

O mundo pode ser um palco – mas, para os roteiristas, ele é bidimensional, branco, tamanho A4.
Foi um ataque fulminante de writers’ block, bloqueio dos escritores, justo quando esboçava a peça da sua vida.
A peça não era somente aquela que o revelaria, a que o tornaria quem ele sempre deveria ser. Era também a história da sua própria vida, e chegara naquele culminante momento no mesmo instante em que as palavras resolveram lhe abandonar.
Passou os próximos dias sem conseguir se mover, os dedos tensos como garras de um falcão a espreitar suas vítimas, mas mantendo a distância prudente entre a tecla que desencadearia todas as outras. Inutilmente tentava narrar o ato de escrever a frase da guinada, mas não conseguia ler (como ator da peça de sua vida) a palavra que deveria datilografar – era uma armadilha paradoxal, mas sem escape.
Dois anos depois que o encontraram morto aos pés da máquina de escrever estéril, estreou a peça baseada no seu drama. E a verdadeira tragédia, notem, é que ele não pode escrever o próprio ato final, justamente aquele que antecedeu os aplausos.

07 fevereiro, 2008

Amputação

Escondendo o olhar de embaraço na sua prancheta, o médico alertou que a necrose tinha atingido até o fêmur e só restava agora a amputação para tentar salvar os tecidos que ainda não tinham sido comprometidos.
Olhei para a perna e, maior do que o horror da separação, uma dúvida inocente me atingiu: que lado da perna seria salvo? O médico não soube responder se salvaria o lado que incluía aquele pé (que parecia solitário e imóvel, mas ainda saudável) ou o resto, o outro pé, a outra perna intocada, o quadril e tudo mais ao norte, de onde falo.
Talvez o pé mereça mais ser salvo do que eu: ele nunca fez mal a ninguém, nunca escreveu essas bobagens, nunca não disse o que queria. Tropeçava, às vezes, mas podia estar somente tentando me impedir, e talvez alegasse autodefesa.
Imaginei um outro eu, regenerado, nascendo a partir da faixa negra, com uma outra coxa, como uma ampulheta, levando a outra bacia, outro tronco e outra cabeça. E esse outro eu bebe aos poucos da areia que corre desse lado para o outro com o tempo. Ele é imperfeito (no lugar da perna, há uma necrose, ligada a esse eu que se extingue), imóvel, indiferente, impassível, mas não inadequado, como todo o resto.

05 fevereiro, 2008

Criação

A partir de uma só seção do tronco sólido, dividi-la em quatro faixas finas e firmes, uma base redonda, mais oito filetes curtos e um grosso e longo para o suporte das costas.
Ainda com o dedo mordido pelo martelo e as costas latejantes pela incômoda posição da serra, o conforto de descansar as pernas num banco seu – não só porque você o possui, ou porque está reservado para seu assento, mas porque você o fez, você o criou a partir de uma só seção de tronco sólido e o transformou em repouso.
Você poderia lixá-lo, cobrir com uma camada da tinta que sobrou do telhado, mas aí seria outro banco, menos rústico, menos seu.
Enquanto você está trabalhando, durante o dia, os netos se apóiam nele para roubar biscoitos. O cão dorme encostado nas suas pernas enquanto você viaja para a cidade.
Muito depois de você ter ido, ainda haverá quem possa ocupar o seu lugar. Mesmo quando todos os que já ouviram suas histórias se forem, qualquer pessoa ainda poderá descansar na sua sólida criação.
E assim será até que o fogo o consuma e apague.