07 fevereiro, 2008

Amputação

Escondendo o olhar de embaraço na sua prancheta, o médico alertou que a necrose tinha atingido até o fêmur e só restava agora a amputação para tentar salvar os tecidos que ainda não tinham sido comprometidos.
Olhei para a perna e, maior do que o horror da separação, uma dúvida inocente me atingiu: que lado da perna seria salvo? O médico não soube responder se salvaria o lado que incluía aquele pé (que parecia solitário e imóvel, mas ainda saudável) ou o resto, o outro pé, a outra perna intocada, o quadril e tudo mais ao norte, de onde falo.
Talvez o pé mereça mais ser salvo do que eu: ele nunca fez mal a ninguém, nunca escreveu essas bobagens, nunca não disse o que queria. Tropeçava, às vezes, mas podia estar somente tentando me impedir, e talvez alegasse autodefesa.
Imaginei um outro eu, regenerado, nascendo a partir da faixa negra, com uma outra coxa, como uma ampulheta, levando a outra bacia, outro tronco e outra cabeça. E esse outro eu bebe aos poucos da areia que corre desse lado para o outro com o tempo. Ele é imperfeito (no lugar da perna, há uma necrose, ligada a esse eu que se extingue), imóvel, indiferente, impassível, mas não inadequado, como todo o resto.

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