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23 janeiro, 2015

Extração

Escrever é uma panaceia expectorante, que trata da melancolia à dúvida, do ódio ao vazio. Uma terapia debilitante, esse analgésico amargo só anestesia por nos entreter com outra dor. Talvez por isso seja só considerado nos casos mais graves, como última medida. E, pela demora na aplicação, o paliativo tardio mal combate os sintomas, sem curar a moléstia original sem controle.

Escrever é uma extração de si mesmo, lapidar da língua os termos precisos, uma remoção da vida que se oferecia à contemplação e agora não pode mais ser ignorada, destacada pelas palavras. Os golpes da ferramenta da fala no veio da vida desgastam também quem pretende demarcar os sentidos procurados. Algo sempre se perde: o fio da navalha, o resto do minério; mais se encontra, entretanto.

Cada batida ritmada, uma só palavra, um só gesto: escrever é escrever sobre escrever.

19 outubro, 2014

Valor do voto

Aí, logo depois de eu ter apertado o número daquele amigo da prima do vizinho e daquele federal que colocou um carro com música engraçada para passar aqui na rua e fez uma festa boa na semana passada, o moleque na mesa me segurou e disse que eu ainda não tinha terminado de votar. Caralho, já votei – duas vezes!
Volto lá pra casinha e ainda aparece três quadradinhos embaixo de SENADOR. Sei lá o que é senador? O rapaz na mesa falou que eu posso ver os números dos candidatos no outro andar, mas eu já vim até aqui, não vou subir escada porra nenhuma.
Perto da porta, no lixo, um santinho, com os números de vários candidatos, inclusive de um senador. Agora é o meu senador.
Para tirar a cara de nojo da moça que me devolve meus documentos (só porque eu peguei um papelzinho do lixo?), explico que pra governador, resolvi votar na Dilma também – se ela perder a presidência, fica pelo menos com o governo, que não é de todo mal.

29 junho, 2014

Entre tempos

O relatório só precisa ser entregue daqui alguns meses, mas é melhor concluir esse trabalho antes de deixar esse continente para trás.

Organizando seus papeis, fica claro que menos de uma semana é o suficiente para registrar os principais pontos que não podem ser esquecidos – e mais um pouco, que a burocracia demanda.

Um dia passa e, depois, outros.

Ainda há tempo de terminar nessa mesma semana, se o ritmo foi duplicado. Mas qual o sentido de correr para terminar uma obrigação que não tem pressa nenhuma de ser concluída?

Ansioso, contempla a terrível possibilidade de que o único motivo para concluir um trabalho (sua única finalidade) seja sustar a pressão do prazo, ticando uma tarefa que automaticamente é substituída por outra nova.

Ao final da semana, o coelho se pergunta se ainda está na frente, ou se deve começar a correr atrás da tartaruga como Aquiles: cada vez mais perto, mas nunca lá. Ainda está adiantando a procrastinação... ou já passou a atrasar a correria da reta final?

04 março, 2010

Sobre rodas

Você acorda sem acreditar que o relógio já deu a volta até o seis, querendo que fosse sábado ou que tivesse dinheiro – ou coragem – a ponto de mandar tudo rodar no inferno em que já estão.
Em minutos a colher gira para adocicar um café sem sal, você toma uma ducha pouco quente, escova a gravata e amarra nas costas a pasta, ou algo parecido, em outra ordem. Esses fatores podem mudar em casas vizinhas – já reparo uma maioria desgravatada, talvez para facilitar a passagem da corda para a forca ou da coleira ao redor do colarinho.
Mas o caminho passa pelas mesmas artérias bloqueadas no trânsito, com o destino na mesma mesa, uma safena e talvez a aposentadoria. Entre tantos outros, no carro, você procura o horizonte, engolido por tantos prédios com muitas mesas e gravatas.
Enquanto você reclama do mesmo trânsito e do azar que lhe sobrou na roleta das heranças, eu espero a enfermeira trazer a cadeira de rodas e me levar ao mesmo jardim. Nessa oscilação de destino repetitivamente indesejado, não somos tão diferentes. Mas você pode dirigir para outro lugar.

06 outubro, 2009

Diálogo

I: Opa. Vamos comer?
K: Já peguei o endereço do Zé do Hamburguer. Fica na Caiubi.
I: Ah, perto da casa do Cavechini!
K: Você sabe onde fica?
I: ... não...
K: ...?

03 julho, 2009

Prêmio

O bilhete mostrava quatro das dezenas, mas faltavam duas. Deu míseros 82 reais e alguns centavos, divididos entre centenas de outros azarados que erraram na hora de completar a cartela. A viagem pro sul vai ter que esperar, assim como a TV nova e aquela dívida antiga com seu irmão.
Na outra ponta do balcão, ela encarava o vazio de dentro da sua taça. Ele decidiu pagar o refil – ela parecia precisar de outra dose tanto quanto ele. O nome do drink que ela tomava era quase tão incompreensível quanto o nome dela.
A conta dos dois deu 82 reais e os mesmos centavos, que ele pagou sem perceber a ironia. Deixou o dinheiro contado no balcão, sem conseguir mais tirar os olhos daquele sorriso.

02 junho, 2009

Outlined / Flip flopped

Hoje as entradas para a Flip começaram a (não) ser vendidas.
Depois de uma hora na fila, somente uma pessoa conseguiu comprar ingresso porque o sistema caía constantemente. A fila só andava para trás, cada vez maior, quase beirando a meia centena. Fiz as contas: 1 pessoa/hora X 14 pessoas na minha frente = dia perdido.
Mandei tudo praquele lugar e fui embora, incomodado pela insuficiência do ar condicionado e constrangido pela semelhança daquela situação com minha estática vida pessoal. Foi um alívio poder sair daquela fila. Ao menos daquela.
A new man outlined: “um novo cara fora da fila”.

15 maio, 2009

Paranóia amorosa

Acho que a mulher que serve meu café está apaixonada por mim.
“Nossa, fazia uma semana que você não aparecia [entrega de qualificação, uma longa história em poucas semanas], eu já estava preocupada que você tivesse achado outro lugar para tomar seu expresso”. Ela sempre lembra o meu pedido – latte macchiato, com um petit wafer. Enquanto a água esquenta, ela retoca a maquiagem pelo reflexo da máquina de expresso. A mão dela treme só quando serve o meu café, a espuma quase toca o pires apoiado pelas unhas recém-feitas. Ela me serve com um sorriso, cada vez maior, cada vez que me serve, cada vez mais sufocante.
Definitivamente ela quer casar comigo. É isso... ou depois de muito tempo procurando coisas sem sentido, eu passei a encontrar sentidos demais.

10 maio, 2009

TeleGenalva - 0800-88888888

Bem-vindo ao TeleGenalva, tecle 1 para crise existencial, depressão, conflito com namorado/a, familiares ou colegas de trabalho.
Tecle 2 para tentativas de suicídio, auto-mutilação, auto-medicação excessiva ou parada cardiorrespiratória.
Tecle 3 para ofertas de emprego ou alteração do horário de aulas.
Tecle 4 para convites ao cinema, balada, baile de tango ou corrida no Cepê.
Tecle 5 para divulgar casos amorosos alheios.
Tecle 6 para consultas amorosas sobre casos próprios.
Tecle 7 para empréstimo financeiro ou dúvidas sobre declaração de imposto de renda.
Tecle 8 para verificar se vou jantar em casa, para informações sobre meu almoço e horários de aula, ou para consultar o paradeiro do meu irmão e checar se ele está tomando insulina direito.

09 maio, 2009

Time left

I got it all backwards.
I thought that the time we have left was all the days to come until the last.
And all the days that were already gone were the ones I’ve had.

Nope.
Time has left us.

Every day that goes by is a day left behind.
We still have every day ahead of us.

I haven’t left you either – I still have some of you inside me, and that comforts me everyday.

02 maio, 2009

Tom's Dinner

And I look
The other way
As they are kissing
Their hellos

And I'm pretending
Not to see them
And instead
I pour the milk

(Suzanne Vega - "Tom's Dinner" - Solitude Standing [1987] - a versão original a capella não é frustrantemente mais adequada para enfrentar essea dias solitários e distantes?)


14 março, 2009

Alunos 1 X 0 “Professor”

- ... então, os mísseis lançados contra o sul de Israel levaram a uma retaliação: o bombardeio e a ocupação da Faixa de Gaza entre o final do ano passado e o começo desse ano. Alguém tem mais alguma dúvida sobre os conflitos, ou sobre as diferenças de objetivos do Hamas, Fatah, Kadima e Likud?
- Professor, você não vai mais escrever na Super?
- Eu precisei parar um pouco, para poder continuar com minhas aulas aqui e na outra unidade, além do mestrado na USP e a edição de uma revista acadêmica sobre comunicação – só consigo fazer quatro coisas de cada vez [piada mal-sucedida]!
- E por que você largou o seu único trabalho legal?
- ...
Essa atravessou a couraça do personagem/professor e desarmou minhas defesas.
O aluno não ter percebido o quanto isso soou ofensivo não foi o pior – o grave foi eu não ter uma resposta nem nunca ter pensado nisso antes, dessa forma.

Pelo menos outra aluna elogiou minha camisa nova.

01 fevereiro, 2009

Alheio

Cada página lida é uma frase não escrita.
Cada mapa estudado, um passo não dado.
Cada filme na platéia, uma cena não ensaiada.
Todo diálogo é um beijo sem toque.
Cuidado com as vidas alheias. Evite a tentação de que elas ocupem e previnam todo o seu viver.
Limite sua curiosidade, seu interesse e sua dedicação aos gestos que não são seus. Ou, nos seus últimos dias, só terá histórias alheias para contar.

30 janeiro, 2009

Tétrico

Jogo tetris no meu quarto com livros, caixas, roupas e outros fascículos de meus dias passados. Tudo muda, a poeira respira e se reassenta, de uma prateleira espanada para a outra. Dificilmente qualquer outro que comparasse sua visita de ontem com o novo cenário de hoje poderia notar os sutis aprimoramentos. As engrenagens do meu relógio cotidiano começam a mover-se enquanto minhas mãos ditam o pulso das rotações.
Não encontrei espaço para suas cartas - você sempre foi indecifrável.
Não há muito espaço para mim, tampouco, entre meus pertences.
É, construí uma bela cela ao meu redor, com grades de papel que eu temo rasgar.
Seria uma ótima pira fúnebre, não fosse o frio predominante que afasta qualquer possibilidade de uma chama, uma paixão, uma verdadeira mudança que supere arrumações corriqueiras.

15 outubro, 2008

Relação-pílula

Você conhece alguém num restaurante, por exemplo.
É alguém que você nunca viu, e de quem pode conhecer muito pouco – se as mesas tiverem toalhas, não poderá saber nem se ela está de saia ou de calça –, em comum só podem compartilhar uma paisagem, um intervalo de tempo, uma coincidência.
Apesar disso, é difícil não imaginar a textura do seu cabelo entre os dedos, o tom da voz enquanto revela segredos, a preferência por berinjelas em fatias ou cubos.
Mais difícil, impossível, é aproximar-se e dividir uma mesa, um sorriso, uma história.
Como é natural, as contas são separadas, cada qual depositada em sua mesa e debitada em seus respectivos cartões de crédito.
Entre uma página e outra do jornal, percebe o lugar vazio e um toque adocicado no ar que corre da janela para a porta, como a trilha de uma fuga sem alerta prévio.
Você não vai conseguir dormir essa noite de novo. Não pelo que poderia ter sido, mas porque sabe que não teria sido tão diferente desse resumo condensado de mais um desencontro.

26 janeiro, 2008

Todas as noites

Todas as noites, era a mesma pergunta enquanto você dormia no meu ombro.
O que teria acontecido se eu não tivesse te dado aquele beijo, naquela noite?
Eu teria conhecido a Itália?
Teria lido Cortázar?
Já teria ouvido falar em Herman Düne, Rachael Yamagata?
O sabor do tango, a doçura das jabuticabas no pé?
Agora não preciso mais imaginar, todas as noites eu sinto a resposta.
Acontece todas as noites.

20 janeiro, 2008

Ócio

Talvez eu devesse voltar a fazer alguma coisa com os meus dias além de aguardar o anoitecer intercalando refeições.
Antigamente, eu tinha um emprego, completava o orçamento com trabalhos extras, filmava, corria, nadava, estudava de noite e escrevia. Acho que em algum ponto eu tirei férias, ou me demiti, não sei ao certo... talvez houvesse uma garota, também.
Só sei que uma grande parte do propósito dos meus dias se dissolveu em expectativas.
No princípio, troquei minha cama por areia movediça, num deserto em que os sonhos me tentavam e decepcionavam, como oásis. O tempo foi passando, e os passatempos expandiram-se até não sobrar um só instante livre que pudesse dedicar a alguma atividade produtiva. Fui absorvido por livros que não eram os que eu estava escrevendo, filmes que não havia dirigido, estudos que não havia publicado, problemas que não eram os meus.
Histórias alheias acabaram ocupando o tempo ocioso que eu passei a chamar de vida.

Dois mil e oito e vinte dias

Escrevo dez páginas ao dia.
Se tivesse começado a escrever um livro no dia primeiro, já teria duzentas e teria escrito um livro.
Em uma hora de corrida moderada, completo oito quilômetros (mais que isso o joelho e o pulmão não agüentam na atual forma física cilíndrica).
Em vinte dias, já teria emagrecido quatro quilos, talvez cinco, e não teria mais um terceiro dígito na balança.
Leio vinte páginas por hora.
Com cinco horas de leitura diárias, teria lido 2.000 páginas e não teria mais uma estante ocupada com livros virgens.
De carro, são cinco horas até o Rio.
Poderia ter visitado ela 48 vezes – imaginando que tudo o que conseguiria dizer levaria somente poucos minutos.

19 janeiro, 2008

Mudo

Falei sobre silêncio e solidão ontem e, no café, quatro surdos-mudos conversavam alegremente enquanto eu lia sozinho. Só se ouvia o virar das páginas e o sorver café.
Talvez, se eu fosse totalmente surdo-mudo (e não só parcialmente, como já o sou), a complicação de tudo o mais que é corriqueiro e simples tornasse mais fáceis algumas coisas impossíveis.
Eu teria um grupo, por exemplo, e meus amigos sempre teriam que sair juntos – talvez alguma delas até aceitasse compartilhar meu silêncio e quisesse dividir essas noites que tenho livres. Ao menos minha auto-piedade teria justificativas mais plausíveis: eu teria um rótulo, uma justificativa, uma explicação, uma expiação, um alvo para minha revolta. As pessoas iam olhar para mim e entender, “coitado, é desse jeito porque não consegue falar com ninguém” – e ninguém ia ousar exigir que eu mudasse.
E o silêncio, agora insuportável, seria aceitável ante a total falta de alternativa.
Mas cada lento compasso do relógio em silêncio continua a gritar todas as notas que estão lhe faltando.

05 janeiro, 2008

Sincroni-cidade

Enquanto eu me ocupo escrevendo isso
Fernando abraça a cintura nua de Lídia
Estevão come um xis-bacon duplo e fritas com maionese
Paulo e Gabriela engravidam-se
Diego bebe água gelada depois de 6 km na esteira
Carla anfetamina na pista
Enquanto eu escrevo isso sozinho
Esse bando de desocupados me deixa até um pouco culpado.