23 maio, 2009

Com razão

A faixa de pedestres fica a uma dezena de passos da porta de casa no sentido contrário, mas ele faz questão.
Nenhum carro enquanto ele espera o sinal. Começa a cruzar a rua sob o holofote ao lado da câmera da CET.

Os passos ecoam na noite até serem engolidos pelo motor que desce solitário a rua.

Ele percebe o farol que se aproxima, mas não reduz os passos, protegido pelo homem verde luminoso, a poucos metros, na outra calçada. Ele está seguro de que não deve ceder à imprudência alheia.
Ela não desacelera, não vê farol nem homem verde ou de preto, nem a ironia de tudo isso.

Ele morre, com razão.

16 maio, 2009

Da corda do relógio para a forca

Em épocas mais ingênuas, achava que só era possível perder as apostas feitas. Fora do jogo, fora de risco.
Esses tempos se foram. Nesses dias não há lugar para salvadores e santos.
Estou cansado de dar corda no relógio para ver a hora da execução chegar com precisão. Na outra ponta da corda do relógio a forca sorri com a boca aberta e me engole cheia de promessas e um único capricho.
Não vou voltar a largar a direção – só decidi dirigir de olhos vendados, com o fígado como único anjo da guarda. Hora de assumir o controle, mesmo que seja para decidir conscientemente perdê-lo.


The Cardigan’s – My favourite game

15 maio, 2009

Paranóia amorosa

Acho que a mulher que serve meu café está apaixonada por mim.
“Nossa, fazia uma semana que você não aparecia [entrega de qualificação, uma longa história em poucas semanas], eu já estava preocupada que você tivesse achado outro lugar para tomar seu expresso”. Ela sempre lembra o meu pedido – latte macchiato, com um petit wafer. Enquanto a água esquenta, ela retoca a maquiagem pelo reflexo da máquina de expresso. A mão dela treme só quando serve o meu café, a espuma quase toca o pires apoiado pelas unhas recém-feitas. Ela me serve com um sorriso, cada vez maior, cada vez que me serve, cada vez mais sufocante.
Definitivamente ela quer casar comigo. É isso... ou depois de muito tempo procurando coisas sem sentido, eu passei a encontrar sentidos demais.

14 maio, 2009

Por que você mataria?

No Pará, alguém lhe passa uma foto e uma nota de cinqüenta.
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Precisava chegar na hora da reunião e acabou separando o casal de ciclistas.
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Apertou um botão para ativar a cadeira elétrica, anotou o horário e foi tomar café.
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Agora que ela descobriu tudo, não faz mais sentido continuar com essa farsa.
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A noite mal dormida impediu a firmeza da mão, necessária durante a cirurgia.
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Esse cara deve ter os cinco reais que faltam.
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Ainda tinha sobrado uma bala no revólver, quando alguém abriu a porta devagar.
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Desligou o telefone sem saber que esse era o último grito de socorro.

10 maio, 2009

TeleGenalva - 0800-88888888

Bem-vindo ao TeleGenalva, tecle 1 para crise existencial, depressão, conflito com namorado/a, familiares ou colegas de trabalho.
Tecle 2 para tentativas de suicídio, auto-mutilação, auto-medicação excessiva ou parada cardiorrespiratória.
Tecle 3 para ofertas de emprego ou alteração do horário de aulas.
Tecle 4 para convites ao cinema, balada, baile de tango ou corrida no Cepê.
Tecle 5 para divulgar casos amorosos alheios.
Tecle 6 para consultas amorosas sobre casos próprios.
Tecle 7 para empréstimo financeiro ou dúvidas sobre declaração de imposto de renda.
Tecle 8 para verificar se vou jantar em casa, para informações sobre meu almoço e horários de aula, ou para consultar o paradeiro do meu irmão e checar se ele está tomando insulina direito.

09 maio, 2009

Time left

I got it all backwards.
I thought that the time we have left was all the days to come until the last.
And all the days that were already gone were the ones I’ve had.

Nope.
Time has left us.

Every day that goes by is a day left behind.
We still have every day ahead of us.

I haven’t left you either – I still have some of you inside me, and that comforts me everyday.

08 maio, 2009

Cruzamentos

Ele formou-se engenheiro e assumiu o escritório da família. O outro seguiu a paixão não-correspondida pelos versos.

Enquanto rumava pela cidade em busca de inspiração, sempre a encontrava nas sombras dos edifícios da construtora com seu sobrenome.
Quando soube do ataque cardíaco, subiu ao alto da ponte que ele projetou para descer uma última vez.

No liceu, numa noite quase um século atrás, os dois colegas tinham sido um só e para sempre só deles, uma única vez.

Ao largo de toda essa trágica história, mas sem remediá-la, a Câmera de Vereadores aprovou na semana passada uma homenagem ao poeta obscuro: seu nome pouco conhecido será também o de uma viela pequena, na zona sul.
Sua pequena rua cruza com a avenida que o engenheiro planejou – e que também leva seu nome para a imortalidade de que foi privado.

Nessa esquina, num café, eu vou encontrar você um dia.

Escolhas erradas

Antes de deixar a cama, ele percebeu que foram as escolhas erradas.
Foram as escolhas erradas que o faziam encarar o teto cada vez mais claro, já tocado pelos primeiros raios da manhã depois de mais uma madrugada perdida.
Não precisava chegar cedo ao teatro – ela nem queria ver a peça. O final da tragédia (que ele não viu) não faria sentido para nenhum dos dois.
Definitivamente devia ter usado cinto, e não devia ter deixado ela tirar o dela, para fazer aquilo que ele tanto queria. Não devia ter ultrapassado os 120 por hora. A quinta latinha tinha sido tão errada quanto a primeira.
Ele foi etiquetado e trocou a cama ainda quente e vermelha por uma chapa de metal alguns andares abaixo.

03 maio, 2009

"Se eu pudesse" - Pedro Mexia

"Se eu pudesse
ter-te
em vez dos
versos
ou ter
um verso
em vez
de ti"

("Se eu pudesse" - Pedro Mexia - Avalanche)

02 maio, 2009

Tom's Dinner

And I look
The other way
As they are kissing
Their hellos

And I'm pretending
Not to see them
And instead
I pour the milk

(Suzanne Vega - "Tom's Dinner" - Solitude Standing [1987] - a versão original a capella não é frustrantemente mais adequada para enfrentar essea dias solitários e distantes?)


01 maio, 2009

Laranja e meia

Procurando morangos na freira, rodando entre os preços das bananas e a promoção para a madame, encontro de longe o que não queria, mas precisava.
Uma laranja – na verdade, sua metade. A metade que complementaria a minha.
Contendo o desespero sem atrair a atenção dos competidores para o mesmo troféu, senti a textura da sua pele e o seu cheiro, entre tantas outras.
Era uma metade perfeita, e o encaixe seria preciso, não fosse um detalhe, um excesso. Já (ainda?) havia outra metade, unida a essa metade que eu sabia ser a minha outra e única. Esta metade cancerosa estava podre, e comprometia, como um parasita, a metade que eu queria para mim.
É por isso que a outra metade da minha laranja custa mais do que uma inteira.