11 dezembro, 2007

Coração dividido pela Dutra

SP: 10.999.999 habitantes / RJ: 6.000.0001 habitantes
Ruas paulistanas vazias sem você.
Pôr do sol sobrecarregado no arpoador quando estou aí.
Não adianta você voltar pra cá.
Eu por aí me atraso.
Falta o Rio dentro de você em São Paulo.
Minha paulistanice sobra na praia.
Precisamos achar outra cidade no meio do caminho, uma cidade para chamar de nossa: talvez Jacareí, ou Paraty.

29 novembro, 2007

Caninos

Começar a nascer pêlo no peito, aos 42, já me pareceu estranho.
Mas o que me atrapalhava a vida era aquela dor nos dentes.
A dentista disse que tinha algo de errado com os meus caninos, e sugeriu lixar.
Cortês, abri a porta de volta à ante-sala e permiti que a doutora passasse primeiro.
Como um cavalheiro, não deixei a doutora perceber que eu a media de cima a baixo, concentrando a atenção nos seu embaixo: firmes 90, 60 definidos, 85 empinadinha.
Sexta-feira saí com o meu bando, bebi demais e precisei me aliviar num poste, aquela sensação libertadora.
Uivando sob a lua, decidi que segunda-feira ia dar um jeito no negócio com a dentista.
Mas estou com fome pra agora – e não dá pra adiar essa vontade de carne pra segunda.

21 novembro, 2007

Caminho

Ao alcance dos meus olhos, embalei no colo o seu sono e te apresentei ao doce do mundo no leite do meu peito.
Temerosa, acompanhei seus primeiros passos oscilantes, sustentados pelas nossas mãos dadas.
Empurrei a bicicleta quando você tomou coragem pra se livrar das rodinhas – “só pra dar estabilidade”, menti: o coração que ia se equilibrando era o meu, eu que precisava do apoio para não cair.
Continuei seguindo seus passos já firmes com menos receio e cada vez mais orgulho.
Suas pernas abandonaram as bermudas e se firmaram em calças.
Meu olhar zeloso, sempre ao seu encalço, já pedia óculos.
Depois do pedágio, numa curva já não mais te vi: talvez tenha tomado algum desvio ou atalho que desconheço; talvez siga só mais à frente, e certamente poderei voltar a te ver num trecho reto mais à frente, se conseguir acelerar.
Só não posso pensar que você talvez não olhe mais pelo retrovisor enquanto aceno no vazio, de longe.

15 novembro, 2007

Exceção à regra

1. Toda semana eu começo oito frases.
2. Que eu esqueço antes da quinta.
3.
4.
5.
6.
7.
8.

03 junho, 2007

terror calmamente contagiante

ele cresce enquanto definho na cadeira
terror com cuidado bate à porta
meus olhos começando a coçar
me desespero paulatinamente
eu namoro um advérbio de modo
minhas mãos a se embaralhar no teclado
frases a perder os sentidos
acho que já deram as oito badaladas de novo

09 abril, 2007

Fora daqui

1. Eu preciso sair de casa hoje à noite.
2. Preciso sair de casa para poder colocar a cabeça em ordem, sair seria a solução.
3. Preciso deixar meus traumas e medos na rua para voltar a trabalhar.
4. Não posso mais sair para fugir do trabalho.
5. Preciso sair antes que acabe abrindo um buraco numa das paredes ou na minha cabeça – o que for mais duro ou menos oco.
6. Mas abro a porta e encaro uma outra sala, igual à minha, e tenho medo que me leve de volta ao mesmo quarto/escritório/calabouço.
7. Na outra semana passei três dias sem tomar nem banho nem providência – pra que? pra quem?
8. Preciso sair de casa para ter vontade de voltar.

25 fevereiro, 2007

O papel dos papéis

1. Nas eleições passadas, quando fui mesário, notei que as cédulas a serem usadas no caso de pane na maquininha eram feitas de papel jornal.
2. Achei a metonímia apropriada: o e-leitor também tinha o direito de ele mesmo escrever os nomes com que os periódicos manchariam suas páginas policiais menos nobres.
3. Voltei naquele dia para casa inspirado pelo desejo de comprar um volume da Constituição em papel crepom – mesmo amassado ou rasgado, esse papel continua lindo!
4. E, se me aborrecesse, poderia tomar-lhe uma ou duas páginas para fazer um lindo adorno de flores artificiais.
5. Foi com choque que, ao chegar à livraria no dia seguinte, percebi que todo o dinheiro que forrava minha carteira era feito de papel higiênico.
6. Com dificuldade, consegui com ele limpar e descartar todo o meu valor antes do final do mês.
7. Mas não consegui diluir o incessante odor do preço.
8. Felizmente, chegou o quinto dia de um novo mês, e recebi com alegria o meu holerite – politicamente corretamente feito de papel reciclado.

21 fevereiro, 2007

De veados e rosas

1. Fazia uns seis anos que eu não via o Palmeirense quando ele chegou já me chamando de viado.
2. O cara era alvi-verde e roxo, não perdia um jogo.
3. Não conseguiu segurar o riso quando eu respondi o que andava fazendo de noite, que não passava mais lá no Zé às quartas.
4. “Porra, mas gafieira... puta perda de tempo!”
5. Cada jogo de futebol são duas hora de vida a menos – sem contar as mesas redondas na TV ou no bar, as vezes que ele foi pro Parque Antártica, pegou fila pro ingresso ou foi comemorar na Paulista cercado por cinco mil fedidos como ele, embalados pelo lacrimogêneo da polícia.
6. “Esse negócio de gafieira, isso, isso aí é... isso é coisa de [mãozinha rebolando]”
7. De noite eu abraço minha nega e sorrio, exausto.
8. Ela me disse que o nome dela era Rosa, mas bem podia ser Vingança.

19 janeiro, 2007

Atlas

1. Eu abri os olhos sem acreditar no gigantesco monte de terra e rochas que aquele homem sustentava sozinho.
2. Tampouco ele pode acreditar em mim, pois, ao me ver, pareceu surpreso o bastante para quase perder o equilíbrio e derrubar aquela montanha invertida que escorava, pelo cume, com as costas.
3. Percebi que se tratava de Atlas, o herói grego condenado a sustentar o mundo por toda a eternidade.
4. Ele sussurrou algo quando tentei me afastar por puro medo instintivo – que só pude compreender quando me aproximei um pouco.
5. “Por favor, tenha piedade, me ajude”, balbuciou, a saliva da fala se misturando no suor que banhava sua pele.
6. Quis correr, nesse exato instante, com medo de ele suplicar que eu dividisse o seu fardo titânico – mas também temia que ele, furioso com minha fuga, derrubasse um pedaço do mundo (a Irlanda, talvez) na minha cabeça.
7. Paralisado, ouvi o gigante gemer um desejo tão antigo quanto o tempo:
8. “A perna esquerda... nnng... estou com uma coceira na coxa que... por favor!”

17 janeiro, 2007

Sem medo nem chances

1. Numa noite de manhã, o terror invade meu silêncio.
2. Minha imaginação viciada, numa bad trip de falsas esperanças, encara sucrilhos açucarados em doses cancerígenas – e o colesterol? a obesidade, com seus ataques cardíacos espreitando a cada esquina, a cada escada? e o aquecimento global?
3. Tudo choca meus olhos como maligno – os duendes com sorrisos diabólicos saem de seu pântano, no final do arco-íris, e vem cortar minha garganta de manhã com a colher de plástico para ficarem com o brinde da caixa de cereais.
4. Coisas terríveis, verdadeiros horrores; encaro o teto escuro.
5. Insetos voam e infestam minha insônia – Chagas? malária? leishmaniose? ebola?
6. Para tentar pegar no sono, conto as balas perdidas que poderiam chegar à minha cama depois de estilhaçar a janela que dá para a paisagem favelada.
7. E todo esse terror, todo esse medo... é como voltar para casa, confortavelmente paralisado.
8. Em calma, sem nenhum ruído, um pesadelo me embala e acolhe.

16 janeiro, 2007

Em paz

1. As ruas se encontram nesses pontos em que te procuro.
2. Não sobrou nenhuma esquina nessa cidade que eu não tenha visitado.
3. Sempre achei que estava perto quando vasculhava os negócios particulares das mulheres públicas do centro.
4. Mas não – elas eram outras.
5. O único lugar que me resta procurar... teria você coragem de ter se escondido dentro de mim?
6. Encaro o túnel frio e negro que me engole com um tiro.
7. No teto, na parede, no sofá e no tapete, meus pedaços riem do meu desespero.
8. Retalhado, eu formo um quebra-cabeça do seu retrato.