13 março, 2010

Pandora, Borges e o bebê

Ela sai do laboratório, cansada depois de mais uma jornada frustrante entre milhares de frases esparsas, procurando a sentença que contenha toda a beleza do mundo: a chave que se encaixa na fechadura de toda a tristeza eterna, liberando a felicidade de sua humanidade limitada.
Há meses tenta achar a frase perfeita; ela deve ter se escondido entre tantos livros, formulários, receitas e bilhetes que ela categoriza, seleciona... e rapidamente descarta. Infelizmente, a cada centena de registros que sua equipe analisa diariamente, bilhões novos são publicados, conversados, impressos ou enviados eletronicamente – um palheiro que cresce constantemente, aumentando a chance de que uma agulha esteja lá dentro, mas dificultando sua localização precisa. A máscara que impede a contaminação pelos ácaros seculares dos pergaminhos mais antigos também oculta qualquer sorriso que possa contaminar seus lábios.

Em casa, seu marido deixou uma panela tampada com sopa de letrinhas antes de sair para o turno da madrugada no hospital. Enquanto a sopa esquenta, ela tenta digerir, fascinada, os sons murmurados pelo seu bebê que aprende a falar – teria sua melodia sentido excessivo, significados demais para serem contidos em poucas palavras?
A cada colherada, de aviãozinho, as letras da sopa formam a sequência exata da frase que ela tanto busca – mas não há necessidade de se preocupar com isso, agora. A risada dele (mais gostosa pelo alimento simbolicamente nutritivo) embala seus ouvidos de volta para um tempo além das palavras e dos significados, onde os sentidos ainda podem imperar soberanos.

4 comentários:

Oito disse...

O personagem principal originalmente era o homem, mas aí ficou muito sexista esse negócio de a mulher deixar comida... e achei melhor a "Pandora" tirar da panela as letrinhas que o "Borges" cozinhou.
Mas aí, no final, ficou essa reprise de sentimento materno. No original, parecia mais interessante o cientista apaixonar-se pelo bebê e esquecer seu trabalho, mas acabei trocando (já quase me arrependo).

Tamara disse...

Hum.

Eu gostei da troca.

Até porque comida + interações precoces = muito material pra análise!

Beijos

Mariana Marchesi disse...

Eu amei os percevejos de bijuteria!

Oito disse...

O horário do seu comentário entrega que vc ficou lendo meu blog quando deveria estar prestando atenção na aula inaugural da PPGCOM. Isso que é ruptura epistemológica...