15 outubro, 2008

Relação-pílula

Você conhece alguém num restaurante, por exemplo.
É alguém que você nunca viu, e de quem pode conhecer muito pouco – se as mesas tiverem toalhas, não poderá saber nem se ela está de saia ou de calça –, em comum só podem compartilhar uma paisagem, um intervalo de tempo, uma coincidência.
Apesar disso, é difícil não imaginar a textura do seu cabelo entre os dedos, o tom da voz enquanto revela segredos, a preferência por berinjelas em fatias ou cubos.
Mais difícil, impossível, é aproximar-se e dividir uma mesa, um sorriso, uma história.
Como é natural, as contas são separadas, cada qual depositada em sua mesa e debitada em seus respectivos cartões de crédito.
Entre uma página e outra do jornal, percebe o lugar vazio e um toque adocicado no ar que corre da janela para a porta, como a trilha de uma fuga sem alerta prévio.
Você não vai conseguir dormir essa noite de novo. Não pelo que poderia ter sido, mas porque sabe que não teria sido tão diferente desse resumo condensado de mais um desencontro.

08 fevereiro, 2008

Writers’ block

O mundo pode ser um palco – mas, para os roteiristas, ele é bidimensional, branco, tamanho A4.
Foi um ataque fulminante de writers’ block, bloqueio dos escritores, justo quando esboçava a peça da sua vida.
A peça não era somente aquela que o revelaria, a que o tornaria quem ele sempre deveria ser. Era também a história da sua própria vida, e chegara naquele culminante momento no mesmo instante em que as palavras resolveram lhe abandonar.
Passou os próximos dias sem conseguir se mover, os dedos tensos como garras de um falcão a espreitar suas vítimas, mas mantendo a distância prudente entre a tecla que desencadearia todas as outras. Inutilmente tentava narrar o ato de escrever a frase da guinada, mas não conseguia ler (como ator da peça de sua vida) a palavra que deveria datilografar – era uma armadilha paradoxal, mas sem escape.
Dois anos depois que o encontraram morto aos pés da máquina de escrever estéril, estreou a peça baseada no seu drama. E a verdadeira tragédia, notem, é que ele não pode escrever o próprio ato final, justamente aquele que antecedeu os aplausos.

07 fevereiro, 2008

Amputação

Escondendo o olhar de embaraço na sua prancheta, o médico alertou que a necrose tinha atingido até o fêmur e só restava agora a amputação para tentar salvar os tecidos que ainda não tinham sido comprometidos.
Olhei para a perna e, maior do que o horror da separação, uma dúvida inocente me atingiu: que lado da perna seria salvo? O médico não soube responder se salvaria o lado que incluía aquele pé (que parecia solitário e imóvel, mas ainda saudável) ou o resto, o outro pé, a outra perna intocada, o quadril e tudo mais ao norte, de onde falo.
Talvez o pé mereça mais ser salvo do que eu: ele nunca fez mal a ninguém, nunca escreveu essas bobagens, nunca não disse o que queria. Tropeçava, às vezes, mas podia estar somente tentando me impedir, e talvez alegasse autodefesa.
Imaginei um outro eu, regenerado, nascendo a partir da faixa negra, com uma outra coxa, como uma ampulheta, levando a outra bacia, outro tronco e outra cabeça. E esse outro eu bebe aos poucos da areia que corre desse lado para o outro com o tempo. Ele é imperfeito (no lugar da perna, há uma necrose, ligada a esse eu que se extingue), imóvel, indiferente, impassível, mas não inadequado, como todo o resto.

05 fevereiro, 2008

Criação

A partir de uma só seção do tronco sólido, dividi-la em quatro faixas finas e firmes, uma base redonda, mais oito filetes curtos e um grosso e longo para o suporte das costas.
Ainda com o dedo mordido pelo martelo e as costas latejantes pela incômoda posição da serra, o conforto de descansar as pernas num banco seu – não só porque você o possui, ou porque está reservado para seu assento, mas porque você o fez, você o criou a partir de uma só seção de tronco sólido e o transformou em repouso.
Você poderia lixá-lo, cobrir com uma camada da tinta que sobrou do telhado, mas aí seria outro banco, menos rústico, menos seu.
Enquanto você está trabalhando, durante o dia, os netos se apóiam nele para roubar biscoitos. O cão dorme encostado nas suas pernas enquanto você viaja para a cidade.
Muito depois de você ter ido, ainda haverá quem possa ocupar o seu lugar. Mesmo quando todos os que já ouviram suas histórias se forem, qualquer pessoa ainda poderá descansar na sua sólida criação.
E assim será até que o fogo o consuma e apague.

26 janeiro, 2008

Todas as noites

Todas as noites, era a mesma pergunta enquanto você dormia no meu ombro.
O que teria acontecido se eu não tivesse te dado aquele beijo, naquela noite?
Eu teria conhecido a Itália?
Teria lido Cortázar?
Já teria ouvido falar em Herman Düne, Rachael Yamagata?
O sabor do tango, a doçura das jabuticabas no pé?
Agora não preciso mais imaginar, todas as noites eu sinto a resposta.
Acontece todas as noites.

21 janeiro, 2008

nananana

O ápice chega aos três minutos e oito segundos, depois que Paul grita
Naaa na na nananaaaa nananaaaa
Hey Jude
São os simples prazeres
A língua dela desce e sobe a cada nananana, colada no lábio inferior
Envolve um picolé invisível
Quase consigo sentir
Colado no lábio inferior

20 janeiro, 2008

Ócio

Talvez eu devesse voltar a fazer alguma coisa com os meus dias além de aguardar o anoitecer intercalando refeições.
Antigamente, eu tinha um emprego, completava o orçamento com trabalhos extras, filmava, corria, nadava, estudava de noite e escrevia. Acho que em algum ponto eu tirei férias, ou me demiti, não sei ao certo... talvez houvesse uma garota, também.
Só sei que uma grande parte do propósito dos meus dias se dissolveu em expectativas.
No princípio, troquei minha cama por areia movediça, num deserto em que os sonhos me tentavam e decepcionavam, como oásis. O tempo foi passando, e os passatempos expandiram-se até não sobrar um só instante livre que pudesse dedicar a alguma atividade produtiva. Fui absorvido por livros que não eram os que eu estava escrevendo, filmes que não havia dirigido, estudos que não havia publicado, problemas que não eram os meus.
Histórias alheias acabaram ocupando o tempo ocioso que eu passei a chamar de vida.

Dois mil e oito e vinte dias

Escrevo dez páginas ao dia.
Se tivesse começado a escrever um livro no dia primeiro, já teria duzentas e teria escrito um livro.
Em uma hora de corrida moderada, completo oito quilômetros (mais que isso o joelho e o pulmão não agüentam na atual forma física cilíndrica).
Em vinte dias, já teria emagrecido quatro quilos, talvez cinco, e não teria mais um terceiro dígito na balança.
Leio vinte páginas por hora.
Com cinco horas de leitura diárias, teria lido 2.000 páginas e não teria mais uma estante ocupada com livros virgens.
De carro, são cinco horas até o Rio.
Poderia ter visitado ela 48 vezes – imaginando que tudo o que conseguiria dizer levaria somente poucos minutos.

19 janeiro, 2008

Mudo

Falei sobre silêncio e solidão ontem e, no café, quatro surdos-mudos conversavam alegremente enquanto eu lia sozinho. Só se ouvia o virar das páginas e o sorver café.
Talvez, se eu fosse totalmente surdo-mudo (e não só parcialmente, como já o sou), a complicação de tudo o mais que é corriqueiro e simples tornasse mais fáceis algumas coisas impossíveis.
Eu teria um grupo, por exemplo, e meus amigos sempre teriam que sair juntos – talvez alguma delas até aceitasse compartilhar meu silêncio e quisesse dividir essas noites que tenho livres. Ao menos minha auto-piedade teria justificativas mais plausíveis: eu teria um rótulo, uma justificativa, uma explicação, uma expiação, um alvo para minha revolta. As pessoas iam olhar para mim e entender, “coitado, é desse jeito porque não consegue falar com ninguém” – e ninguém ia ousar exigir que eu mudasse.
E o silêncio, agora insuportável, seria aceitável ante a total falta de alternativa.
Mas cada lento compasso do relógio em silêncio continua a gritar todas as notas que estão lhe faltando.

18 janeiro, 2008

Silêncio sozinho covarde

Uma mulher entra na lanchonete e percebe o único homem, sozinho numa mesa com quatro lugares, próximo ao balcão.
Ela pode sentar-se na frente dele, e ele poderia se tornar o homem da sua vida. Há também o assento oblíquo, nem diretamente ao lado nem à frente, mas próximo suficiente para dizer “Oi, sou a Cláudia, trabalho na loja da esquina... você gosta de cinema?” ou fazer uma piada sobre como o lugar estava cheio, “Ainda bem que fiz reservas com antecedência...”. Ou numa das mesas vizinhas, poderia só elogiar a gravata dele, um tom profundo e calmo como o céu no início de uma noite refrescante de verão, e ver pra onde iriam as coisas a partir daí.
Mas não. Ela senta-se em outra mesa, próxima a uma pilastra, e mastiga sua solidão vagarosamente. É uma distância segura para impedir qualquer risco de contato, mas ainda é próximo o suficiente para permitir olhares fugazes enquanto ela imagina se ele saberia beijar seus lábios inferiores como o ator da novela, se sua voz seria grave e reconfortante como a de seu avô, ou se ele seria um bom pai para seus filhos.
Na saída, pensa em perguntar se ele tem um isqueiro, mas percebe a placa com o círculo riscado, cortando o cigarro ao meio, e sai da lanchonete silenciosa e covarde.

17 janeiro, 2008

Receitas para dor alheia

Acordei com uma dor no braço diferente da costumeira.
Meu médico recomendou uma dieta rica em cálcio.
No shopping, um colchão novo prometeu serenidade em oito vezes sem juros.
Meu psicanalista me perguntou se minha mãe condenava o onanismo.
Ela diz que eu devia parar de escrever tanto até tarde.
O mecânico acha que o câmbio está custando para engrenar da primeira para a segunda e precisa de um novo alinhamento.
Meu chefe me deu o resto do dia de folga e disse pra encomendar um teclado ergonômico.
Minha avó me benzeu, puxou três rezas segurando uma colher de água e me deu pra beber instantes antes de, coincidentemente, parar a dor.

16 janeiro, 2008

Sorvendo areia

Meu camelo morreu no 44º dia em que atravessava o deserto.
As tempestades de areia moviam a paisagem a cada noite, então eu não sabia se estava perto de escapar daquele inferno árido ou se ainda estava a poucos quilômetros de onde começara minha peregrinação. Depois de oscilar o primeiro mês em círculos, percebi que havia afundado ainda mais nas entranhas secas do deserto, fugindo do meu ponto de saída e me distanciando, sem saber, da salvação.
Nenhuma miragem me distraiu para que eu pudesse me ausentar da áspera realidade. Uma miragem teria ao menos me salvado da lucidez clara e brilhante em que me afogava.
Depois que meu camelo morreu, no 44º dia, passei a arrastar sua carcaça nas costas. Ainda que me atrasasse, sentia que poderia me alimentar de sua carne – se ela ainda não tivesse apodrecido sob o sol. Ao menos ele me fazia companhia e me impedia de ter qualquer esperança de chegar a algum lugar.

15 janeiro, 2008

Alívio

Ela voltou e ele aceitou todas as desculpas. Até mesmo as que ela não deu: depois, na memória fantasiada do reencontro, ele inventou justificativas complementares irrecusáveis.
Mas a verdadeira desculpa era dele.
Mais do que casado, estava agora aliviado por não ser mais solteiro. Aliviado por não ter mais que procurar outra. Aliviado por não sofrer mais, tentado a encontrar os olhos dela nos outros rostos. Aliviado por não ter mais que falhar em simplesmente tentar. Aliviado por não ser mais errante.

14 janeiro, 2008

Objeto da arte

Enojado de mim, fujo de casa para naufragar na noite. Sozinho: que posso fazer se as melhores idéias me vêm sem companhia?
Longe, esboço enredos para romances literários ou reais. Quando o dia vence, volto pra casa e consigo escrever só poucas frases – umas oito, no máximo, que guardo neste meu inconsciente coletivo.
Claramente, eu já fiz minha escolha entre a criação e a memória. Depois de feito, de que vale guardar algo que já foi um pedaço (só) meu?
Criar sem lembrar é ter para sempre um momento perdido. (Se gostaram, tomem nota dessa)

13 janeiro, 2008

Something

Ele cantava “Something” toda errada. “Something in the way she woos me” soava como “she uses me”. O último verso "I don't want to leave her now / You know I believe, and how" era "You know I don't even know how". O começo do refrão "You're asking me will my love grow / I don't know, I don't know" se transmutava em algo como "You're asking me if I’ll let go".
No quarto, comecei a procurar o encarte para mostrar a letra certa. Prudência e uma licença poética me fizeram desistir a tempo. Afinal, gostava mais da versão dele. Talvez os Beatles é que estivessem errados.

10 janeiro, 2008

Pesadelos

Adormeceu e sonhou que podia andar novamente, até voar, e que ele havia voltado, arrependido e apaixonado. Mas, no momento em que chegava ao altar, despertava em desespero e decepção.
Passou cada dia menos tempo acordada e mais viva em delírio, recusando-se a abandonar o castelo que erguia dos lençóis.
Os sonhos ficavam cada vez mais elaborados. Com o tempo, ela foi eleita presidente do mundo, chegou à lua, descobriu a cura da fome e escreveu um poema que trouxe a paz mundial.
E todas as noites ela flutuava por seu reino, maravilhada com o mundo que seus olhos cerrados iluminavam.
Só não é um mundo perfeito porque ela ainda tem um recorrente e horrível pesadelo em que está sozinha e não consegue se levantar da cama.
Às vezes esse pesadelo dura o dia inteiro.

07 janeiro, 2008

Ilhado

As ondas batiam fortes e mais rápidas que as suas braçadas de delírio. Aos poucos a fadiga, as câimbras, a dor no baço e o desespero começam a carregar o corpo de volta à praia.
A correnteza lhe dá tempo para retomar sua respiração.
Enquanto flutua no verde frio das águas, ele encara o céu, sem conseguir ver qualquer terra no horizonte além da sua ilha. Suas braçadas não são fortes o suficiente para lhe dar asas que o resgatem desse imã de lama e abandono.
Ainda assim ele tenta, todas as manhãs, fugir do cativeiro náufrago. Às tardes ele é arrastado de volta com a vã esperança de que o mar possa ter trazido também outra ilha – qualquer uma – no lugar daquela. Ou outro náufrago para dividir sua miséria.

06 janeiro, 2008

Procura-se: (de) novo eu

Método e dedicação de vestibulando/2000
Cintura e peso modelo 2001
Humor de 2002
Amigos de 2003
Paixão (a mesma) desde 2004
Jornalismo e viagens como em 2005
Nada de 2006
Cabelos de 1997

05 janeiro, 2008

Sincroni-cidade

Enquanto eu me ocupo escrevendo isso
Fernando abraça a cintura nua de Lídia
Estevão come um xis-bacon duplo e fritas com maionese
Paulo e Gabriela engravidam-se
Diego bebe água gelada depois de 6 km na esteira
Carla anfetamina na pista
Enquanto eu escrevo isso sozinho
Esse bando de desocupados me deixa até um pouco culpado.

04 janeiro, 2008

Melhor que amigo

Meu primeiro melhor amigo ficou com minha namorada.
Meu segundo melhor amigo namorou minha ex.
Meu terceiro melhor amigo tentou minha pretendente – não deu em nada, mas a gente não consegue mais se falar como antes.
Encontrei minha quarta melhor amiga na cama com o melhor amigo dela (pior que eu até simpatizava com o cara).
Minha quinta melhor amiga resolveu que nós devíamos ser só amigos, e virou minha ex-melhor amiga.
Enquanto levava meu sexto melhor amigo para passear e satisfazer suas necessidades no parque, ele acabou se enroscando na melhor amiga de uma futura amiga minha.
Essa minha amiga – a sétima melhor – disse sim.
Meu oitavo melhor amigo aceitou ser o padrinho, mas ficou com uns olhares esquisitos durante a cerimônia.