16 dezembro, 2006

Eu agora

1. Eu poderia fechar os olhos, tragar um último gole sufocante de madrugada e me esconder entre os lençóis; mas eu não consigo mais querer isso.
2. Olho para as estantes e calculo quantos dos catorze livros que atualmente “leio” poderia terminar nessas cinco horas que me faltam até o despertador tocar na cabeceira, anunciando a manhã.
3. Quero voltar a escrever, concluir meu livro, meu T(ese)CC, iniciar e terminar um mestrado (são cinco horas inteiras que ainda disponho!), poluir meu blog com otimismo e pulverizar minha escrivaninha com post-its amarelos e trechos de contos.
4. Não penso mais em voltar o calendário para a época em que eu queria ser feliz – eu quero; eu posso; eu agora [verbo intransigente].
5. Sartre estava certo: querer, essa é verdadeira liberdade humana.
6. Ninguém pode tirá-la de você.
7. Tampouco pode compartilhá-la.
8. Pela primeira vez em muitos meses, eu quero viver de novo.

06 dezembro, 2006

Jeca Tatu e o neo-determinismo

1. Pelo celular eu recebo – um desses luxos tecnológicos da modernidade – o resultado dos meus exames de sangue, urina, fezes e outros que não posso publicar nesse horário.
2. Negativo.
3. Que decepção!
4. Nem uma anemiazinha, nem uma toxoplasmose, nem uma lombriga, giárdia ou cisticerco cerebral?
5. Nada para explicar (justificar? expiar?) a letargia que tem sido meus últimos meses.
6. Uma anemia seria a resposta para tudo; eu compreenderia, diagnosticaria, trataria, resolveria.
7. Frustrado, faço mais um coffee break – mais um intervalo entre a procrastinação da última hora e o ócio preguiçoso que ocupará o resto da minha tarde.
8. Na falta de um pneumotórax, só me resta voltar ao consultório daquele Dr. vienense (de tangos argentinos minhas noites de quarta já estão cheias).

03 dezembro, 2006

Tempo livre ocupado

1. De repente, aquela vontade de me vomitar.
2. O amigo risonho dispara: “e aí? Que anda fazendo?”.
3. Nem sei que dia da semana é.
4. Tento explicar que andei ocupado, mas não sei explicar com o quê.
5. Terça-feira (eu acho que era uma terça) eu ia trabalhar, mas aí... o que foi mesmo?
6. Eu paro e tento encontrar sentido nas folhas de calendário que foram deixadas no chão: maio, junho, julho, agosto, setembro, novembro...
7. Talvez tivesse alguma coisa entre setembro e novembro.
8. Acho que setembro, novembro, terça-feira ou hoje podiam ter logo o mesmo nome sempre.

19 novembro, 2006

Não comerás

(em tempos de anorexia...)
1. Quando não tenho o que fazer, o tédio sempre me dá fome.
2. Acho que acabo comendo muito para ver se preencho esse vazio aqui no meio, ou para ver se encontro o meu limite.
3. Como quando me sinto sozinho ou para acompanhar todas as pessoas ao meu redor que estão também comendo.
4. Às vezes, como porque preciso; outras, porque não deveria.
5. Ultimamente, tenho comido para fugir do trabalho – com pausas para lanchinhos que se emendam e devoram dias inteiros.
6. E quando tenho ódio, como, como muito.
7. Como para me punir e para me vingar – como para que você tenha que suportar a vergonha e o asco da minha obesidade.
8. Como para ignorar a certeza de que um dia serei também comida.

18 novembro, 2006

Trocando em miúdos

1. Uma metáfora é o melhor jeito de dizer o que se quer, sem ofender.
2. (Não confunda com o ato falho, que é o pior jeito de se dizer o que não se quer, sem querer).
3. Vamos supor que você brigou com o seu pai, porque ele não te deixou viajar no final de semana em que você planejava dormir com seu namorado.
4. Aí, na falta de um ombro amigo, você senta e descarrega sua frustração no papel por meio de um jogo de palavras e imagens; recomendo associações livres.
5. Dessa forma, seu pai vira uma chuva, seu namorado se transforma em um pedaço de bolacha e o final de semana é um piquenique que uma formiga – você! – invade.
6. Ocorre que, honestamente, ninguém vai entender o que significa aquela formiga bombardeada por uma tormenta de orvalho, nem como a garoa conseguiu formar um filete de rio que levou a bolacha embora e afogou o inseto guloso.
7. Nesse momento, não entre em pânico: seu texto saiu do controle (muito freqüente nessa época do ano), mas ainda há tempo de abandoná-lo com segurança.
8. O problema real só começa quando você percebe que seu pai, baby, também era uma metáfora.

17 novembro, 2006

Preservação pessoal

1. Estava bem atrasado, fazendo a barba e ouvindo as últimas no rádio enquanto a ducha rápida esquentava.
2. Aí, um barulho tão sutil quanto intrigante: Raspflappiusplosh.
3. Dentro da latrina, que agora mais parecia uma fonte barroca, um passarinho.
4. Ele estava desesperado por ter caído na minha privada, mas o que era realmente estranho e surpreendente – pelo menos para mim – era o fato de que eu agora tinha um pássaro nadando entre meus dejetos.
5. Olhei ao redor em busca de uma solução para o impasse, mas... nada.
6. Se ele tivesse caído mais ao lado, em cima do bidê (que eu nem uso!), teria sido muito mais fácil.
7. Dei a descarga e pronto.
8. Eu estava bem atrasado.

16 novembro, 2006

Protegido

1. Quando tinha sete anos, o Collor ficou com a minha poupança.
2. Desde então, já fui roubado outras sete vezes, duas delas com arma na cabeça: o kadet da minha mãe em São Caetano; oitenta reais quando estava com o braço enfaixado em Santo André; dez reais quando voltava para casa do enterro de um amigo; minha carteira e a chave do carro (mas desprezaram o carro); e dois toca-fitas.
3. Uma vez levaram até minhas calças, mas deixaram as meias e a cueca, no meio de uma trilha em Paranapiacaba.
4. Minha previdência foi-se com o Banco Santos.
5. Um apartamento incendiado apagou o resto que guardei da minha vida.
6. Cada novo alarme, cada seguro, cada medida de prevenção me parecem tão injustos e violentos quanto os outros assaltos.
7. Acho que com o tempo eu fui me acostumando, e acabei percebendo que não tenho nada – as coisas estão só temporariamente sob minha guarda.
8. Mas ninguém pode tirar minha viagem para o Chile durante a faculdade ou aquele beijo que você me deu no sofá da casa da sua vó.

15 novembro, 2006

Próximo

1. No interior do Laos, um jovem busca água para a avó que aguarda numa cama simples de feno.
2. São sete quilômetros até o poço, e depois de algumas horas na fila restam os mesmos sete quilômetros – mesmo que o peso do jarro pareça ampliar o retorno.
3. Já faz alguns meses que um caroço apareceu no pescoço da avó, e desde as últimas festas ela se recolheu para sua cabana sem mais sair para alimentar as galinhas.
4. Nas últimas semanas a guerra voltou e colheu seus irmãos.
5. A plantação abandonada arde sob o sol, quando ele se aproxima da casa no raiar da manhã.
6. Também já não há mais galinhas para alimentar – o que é bom, pois não haveria mais grão para elas nem para ninguém.
7. O quarto, com a janela fechada, ainda está escuro, mas ele já percebeu que a água não vai ser mais necessária.
8. O pior é que roubaram o rádio do meu carro hoje – já é a segunda vez.

05 novembro, 2006

Metonímia para uma empreitada americana

1. Empreiteira americana desiste de reconstruir Iraque
2. "A Brechtel, maior empresa de engenharia dos EUA, está deixando o Iraque, depois que 52 dos seus funcionários morreram em atentados e seu último contrato venceu.
3. Está partindo sem cumprir sua missão: reconstruir as centrais de energia, água e esgoto.
4. Bagdá recebeu menos de seis horas diárias de energia no mês passado e a maioria da população não tem água tratada e saneamento básico.
5. A maior parte da verba de US$ 21 bilhões destinada à reconstrução foi usada nos últimos anos para a segurança e não há mais dinheiro em caixa.
6. Alguns funcionários permanecerão no país para cumprir formalidades administrativas, mas o trabalho iniciado após a queda de Saddam Hussein, em abril de 2003, foi encerrado, disse Cliff Mumm, diretor de infra-estrutura da empresa.
7. A Bechtel assinou 99 contratos, mas eles foram abandonados por questão de segurança." (AFP e NYT)
8. Peço desculpas pelo teor jornalístico dos últimos dias - em breve retomaremos a programação normal - mas não podia deixar o momento político dessa história passar.

04 novembro, 2006

Em família

Vô: Você viu, Ivan, que agora vai aumentar os ônibus em São Paulo?
Vó: Antônio, vai pegar os copos!
Vô: E o metrô também vai aumentar agora, parece que vai pra... tá dois e trinta.
Vó: Esse Lula é um desgraçado mesmo, esperou a eleição para aumentar tudo de novo.
Vô: E agora o desconto dos aposentados acabou também, agora o aposentado tem que pagar ônibus também, e tá mais caro... eu vi no jornal da Fátima e do Bonis.
Pai: Pai, isso é só para os ônibus interestaduais de Goiás, e nem foi aprovado ainda, tá na Câmera.
Vô: Agora eu vou ter que pagar ônibus!
Vó: Esse Lula, ele é mesmo um... Antônio, cadê os copos?

03 novembro, 2006

31 outubro, 2006

"Why I Write" - George Orwell

8. "All writers are vain, selfish and lazy, and at the very bottom of their motives there lies a mystery." (p10)
1. "Putting aside the need to earn a living, I think there are four great motives for writing, at any rating of writing prose"; (p4)
2. "Sheer egoism – desire to seem clever, to be talked about, to be remembered after death, to get your own back on grown-ups who snubbed you in childhood, etc. etc." (p4)
3 e 4. "Aesthetic enthusiasm – perception of beauty in the external world, or, on the other hand, in words and their right arrangement. Desire to share an experience which one feels is valuable and ought not to be missed." (p5)
5. "Historical impulse – desire to see things as they are, to find out true facts and store them up for the use of posterity." (p5)
6. "Political purpose – (…) desire to push the world in a certain direction to alter other’s peoples idea of the kind of society that they should strive after." (p5)
7. "I write it [a book] because there is some lie that I want to expose, some fact to which I want to draw attention, and my initial concern is to get a hearing." (p8)
(“Why I Write”, George Orwell, 1946)

28 outubro, 2006

Mistério matinal

1. Todo dia de manhã eu recebo uns papéis aqui em casa.
2. Eles vêm cheios de desenhos e rabiscos pretos, brancos e coloridos.
3. Eu não sei de onde vem, nem pra que servem.
4. Toda manhã chegam folhas novas, com desenhos e rabiscos que freqüentemente se repetem – eles mudam um pouco, o suficiente para se parecerem sem serem os mesmos.
5. Sempre folheio as páginas cheias de histórias procurando um manual de uso (ou uma explicação de sua utilidade), mas nunca encontrei nada.
6. Quando eu acumulo uma pilha de papéis de vários dias, coloco tudo para fora.
7. No dia seguinte eles desaparecem e eu fico imaginando se eles não são simplesmente embaralhados e mandados de novo pra mim alguns dias depois.
8. Comecei a rasgar, queimar e engolir essas folhas, para ver se eu começo a receber algo diferente, ou se elas param de aparecer.

27 outubro, 2006

Deu de novo

1. Às vezes dá vontade de gritar.
2. Outras, de jogar o carro da ponte pro rio engolir.
3. Tem aqueles dias que eu não sei por que sair da cama – e, eventualmente, eu nem saio.
4. De vez em quando, penso que a solução é parar alguma pessoa na rua e elogiar seu vestido colorido, seu jeito de correr, suas costas, qualquer coisa que torne a vida um pouco mais agradável.
5. Ou então seguir essa pessoa até sua casa e ver o que ela faz depois de jantar.
6. Nos piores dias, penso em rasgar tudo o que eu já fiz, esquecer os lugares que visitei, começar do zero – mas o medo de acabar fazendo tudo de novo é maior.
7. Na maioria das vezes eu me escondo num livro, numa caminhada, num filme ou por aqui.
8. Às quintas-feiras eu leio Batman e passa.

26 outubro, 2006

“The Old Man and the Sea” – Ernest Hemingway

1. “You violated your luck when you went too far outside.
2-4. ‘Don’t be silly’, he said aloud “and keep awake and steer. You may have much luck yet. I’d like to buy some if there’s any place they sell it’, he said.
5. What could I but it with? he asked himself.
6. Could I buy it with a lost harpoon and a broken knife and two bad hands?
7, 8. ‘You might’, he said. ‘You tried to buy it with eighty-four days at sea’. ” (p117)
(“The Old Man and the Sea”, Ernest Hemingway, 1952)

25 outubro, 2006

De queijo

1. Desde o começo ele amou o jeito como ela falava, como se encarasse e envolvesse as entranhas de seus ouvintes.
2. Desesperado ante aquele decote, arriscou soterrado por outros impulsos menos lisonjeiros: “Amei o seu vestido!”
3. Confessou sussurrando que a amava enquanto ela adormecia no seu peito, exausta.
4. Definitivamente amou daquele jeito que eles descobriram juntos numa noite quente.
5. Aprendeu a superar as brigas, as agonias e os silêncios intragáveis em que ela o exilava quando ele esquecia de lembrá-la do quanto a amava.
6. Amou todos os tipos de amores que teve por ela, mesmo os que doíam ou os que nem ela (nem ele) compreendia.
7. Com o tempo, passou a amar as tardes na varanda tomando chá e vendo os meninos (filhos, que depois se metamorfosearam em netos) jogando bola enquanto as folhas caíam devagar.
8. Hoje em dia ele ama mesmo o suflê de queijo que ela faz aos sábados quando tem visita.

24 outubro, 2006

Paisagem

1. Eu costumava amamentar nossa filha na sacada do prédio porque ela gostava do vento e dos barulhos da cidade.
2. Da sacada, eu observava com zelo ela brincando na piscina com os primos de Bragança.
3. Antes do jantar, eu saía para a sacada para ver ela se despedir das outras meninas que jogavam na rua enquanto a noite nascia.
4. De madrugada, esperava os faróis do nosso carro velho chegarem apalpando a rua até encontrar a porta da garagem para poder ir dormir tranqüila.
5. Eu lia o jornal na sacada quando me ligaram avisando.
6. Agora, para além dos morros de prédios que cercam o horizonte, na minha frente vislumbro aqueles campos verdes de beleza estéril e de tranqüilidade desoladora.
7. Acima, depois das nuvens, das estrelas e dessa angústia sufocante, nossa filha me espera do seu lado.
8. Abaixo, são só quinze andares que me separam de vocês.

19 outubro, 2006

Banquete

1. De aperitivo, Morphine fatiado bem fininho com um copo de Baden Powel.
2. Depois, salada Green Day com queijo Ray Charles.
3. Nos dias mais frios, recomendo também um caldo do mangue de Chico Science.
4. Para dar um toque especial ao filé de Led Zeppelin, uma pitada (pequena, se não perde o sabor original) de Sex Pistols.
5. O molho Metallica pode ser feito com ou sem pedacinhos de Elvis.
6. Chico a gosto (eu normalmente ponho bem pouquinho, por causa da pressão, mas há quem não viva sem ele).
7. Para beber, uma taça de um Piazzolla suave.
8. De sobremesa, Fionna Apple.

18 outubro, 2006

8:01

1. Oito anjos em cavalos, num sonho.
2. Oito dívidas na cobrança, e um plano.
3. Oito horas numa pista, e uma aposta.
4. Oito zeros no prêmio, e uma certeza.
5. Oito cavalos na corrida, e um disparo.
6. Oito segundos e uma angústia, na derrota.
7. Oito balas num revólver, e uma dor.
8. Oito filhos e uma viúva.

17 outubro, 2006

Genética

1. A bisavó de Fábio participou da semana de 22.
2. O bisavô de Fábio lutou na guerra civil espanhola.
3. A avó de Fábio estava em Woodstock e em Praga.
4. O pai de Fábio foi torturado no Araguaia.
5. A mãe de Fábio era assistente fotográfica do Glauber.
6. O irmão de Fábio marchou em Seattle.
7. Fábio está concluindo seu MBA, opera um off-shore com sede em Bahrein e anunciou ontem seu noivado com uma estilista texana.
8. “E o pior é que ele é hetero!”, gritou o enfartado pai de Fábio.

16 outubro, 2006

À luz de velas

1. Durante o jantar, ela reencontra aquele amigo e os dois começam a cantar divertidas canções em francês.
2. Você sorri para os dois enquanto tenta decifrar (mesmo sem entender nada dessa lígua) que música é essa e que sorriso é esse que ela não tira do rosto.
3. A orquestra esboça um tango, e ele nem se preocupa em pedir licença para rodopiar com ela pelo salão, dançando lentamente na frente da sua mesa.
4. Depois de duas horas dele descrevendo a influência das alvoradas de Roma nos seus últimos quadros, você pede o quinto café e a conta.
5. A mão dela se aproximou da dele para pegar a bolsa ou ele interceptou o gesto dela propositadamente?
6. Já passou tanto tempo que você começa a duvidar se eles realmente foram ao banheiro.
7. Um sentimento forte de desgosto traz de volta a lembrança de como ela parecia próxima de você antes de ele chegar.
8. Traído, você levanta da sua mesa e atravessa o restaurante vazio até chegar à mesa que eles deixaram vazia.